
O Decreto-Lei n.º 93/2025, publicado em agosto de 2025, veio reformular por completo o regime jurídico da mobilidade elétrica em Portugal, substituindo a legislação em vigor desde 2010. O diploma entrou em vigor a 19 de agosto de 2025, mas prevê um período transitório até 31 de dezembro de 2026, durante o qual coexistem o modelo antigo e o novo. A aplicação plena está marcada para 1 de janeiro de 2027, garantindo assim uma adaptação progressiva de operadores e utilizadores.
Entre as mudanças mais relevantes destaca-se o fim da figura do comercializador de eletricidade para a mobilidade elétrica (CEME), tornando desnecessária a intermediação nos carregamentos. Estes passam a ser realizados diretamente no mercado elétrico ou em regime de autoconsumo. O regime introduz também a possibilidade de carregamentos “ad hoc”, que deixam de depender de contratos prévios e podem ser pagos no momento. Para assegurar esta simplificação, os postos de carregamento com potência igual ou superior a 50 kW ficam obrigados a aceitar cartões bancários, enquanto os restantes devem disponibilizar soluções eletrónicas, como QR codes.
A nova lei reforça ainda a transparência: os preços têm de estar visíveis nos postos, permitindo aos utilizadores comparar antes de carregar, tal como acontece nos combustíveis tradicionais. Ao mesmo tempo, é eliminada a exclusividade da Mobi.E, surgindo a figura dos Prestadores de Serviços de Mobilidade, que poderão criar e gerir redes próprias de carregamento, fomentando concorrência e reduzindo preços, especialmente em áreas onde o carregamento é mais caro, como as autoestradas. Para acelerar a expansão da rede, a instalação de novos postos passa a requerer apenas uma comunicação prévia, dispensando licenças mais complexas.
Outra novidade é a possibilidade de valorizar as emissões de CO₂ evitadas através da emissão de títulos de carbono, medida que dependerá de regulamentação futura. O diploma também abre caminho a tecnologias mais avançadas, como o carregamento bidirecional (vehicle-to-grid), o autoconsumo e o carregamento inteligente, permitindo que os veículos elétricos devolvam energia à rede e que os utilizadores façam uma gestão mais eficiente do consumo. Foram ainda incluídas normas específicas para o carregamento de embarcações elétricas.
Apesar dos avanços, permanecem desafios. Um deles é a perda da interoperabilidade obrigatória, considerada essencial por associações do setor como a UVE. Há ainda problemas práticos, como as cativações excessivas nos pagamentos bancários, em que um carregamento de 15 euros pode levar ao bloqueio temporário de valores muito superiores, penalizando os utilizadores. Durante o período de transição até 2027 subsistem também riscos de acesso limitado a determinados postos fora da rede pública. Acrescem dúvidas quanto aos custos de adaptação dos sistemas já instalados, sobretudo para detentores de pontos de carregamento, e quanto à equidade dos serviços de subscrição, que podem tornar o carregamento sem adesão significativamente mais caro.
Outro ponto sensível é a tarifação: embora a cobrança por kWh seja a mais justa, o diploma mantém espaço para tarifários baseados no tempo, o que pode distorcer preços. Também subsistem incertezas sobre a manutenção da Tarifa de Acesso às Redes (TAR), essencial para garantir a viabilidade económica de postos em zonas de menor procura e evitar desigualdades territoriais. A tudo isto soma-se a dependência de regulamentação complementar, já que o texto legal remete mais de uma dezena de matérias para futuras portarias e regulamentos, o que pode atrasar a concretização prática das medidas.
No conjunto, o RJME representa um avanço decisivo: simplifica o carregamento, reforça os direitos dos utilizadores, promove a concorrência e coloca Portugal em linha com as normas europeias. Contudo, o verdadeiro impacto dependerá da forma como os desafios forem superados, nomeadamente na interoperabilidade, nos métodos de pagamento, na tarifação e na definição clara das regras complementares. Para os utilizadores que carregam o carro em casa, nada muda: o processo mantém-se idêntico. Já para quem depende da rede pública, o diploma promete uma experiência mais simples, transparente e competitiva, em linha com os objetivos de descarbonização e inovação tecnológica.